segunda-feira, 26 de abril de 2010

Rafael Leandro

Não me recordo como consegui, mas foi a descoberta do nome e da profissão de sua mãe o grande motivo. Não era pessoal, quando se tem onze anos e uma cabeça vazia, nada é pessoal. Dalgisa era cozinheira de creche, foi isso que comuniquei toda a escola com tom de deboche, uma profissão honesta como qualquer outra, mas que se torna uma arma nas mãos de um moleque. Ele se enfureceu, claro, qualquer um na situação dele teria feito o mesmo comigo. Agarrou-me pelo pescoço no meio do recreio, momento destinado para o almoço, mas que a correria sempre toma lugar, e bateu o canto de minha testa contra a parede. Eu, criança branca com traços delicados, logo tive o rosto deformado pelo enorme galo que saltou para fora. Na sala da diretora, de moletom branco, bijuterias no pescoço e sorriso gengival, nenhum sorriso foi dado, enquanto ele soluçava e eu mantinha-me em silencio, ela escrevia um bilhete para cada responsável, bilhete que teve seu fim nas mãos de meu irmão. Três anos mais velho e uma inconsequência nos atos o levou até os portões da escola, surrou o garoto de uma maneira que apenas nos filmes europeus lado B que tentam mostrar a degradação da juventude, pode se observar. Ao fim do espetáculo, algumas poucas palavras foram ditas no ouvido de meu colega, que com sangue no colarinho veio me pedir desculpas e dizer que agora éramos amigos, humilhação.
Na fila da lotérica o encontro, esta na minha frente e não sabe que estou novamente em posição privilegiada, eu o vejo e não é vice-versa. Usa meias cinzas, tem voz comicamente aguda e pela desproporcionalidade de seus músculos, usou uma generosa quantidade de esteroides anabolizantes durante esses anos. Ali estávamos, duas criaturas que tinham a definição das palavras "desculpa" e "amizade" totalmente distorcidas pelo acaso. Fez sua "fézinha" em três tipos de jogos diferentes e se foi, fiz questão de virar-me no momento em que cruzou comigo. Nunca mais o vi, o arrependimento me força a colocá-lo as vezes em minhas orações, hoje em dia trabalho como cozinheiro.